domingo, 24 de julho de 2011

Está frio, e faz-se tarde..

Todos os dias cruzam-se dois desconhecidos pelas ruas. O queixo é preciso, a boca cerrada, e os olhos embrenhados no mesmo tédio que é igual. Poderiam ser dois Homens, mas é um alguém de alguém que não pode ou não deve ou fica menos bem.É provável que um deles se esteja questionando, imaginando cenários de intimidade, aí, é um animal de alma e vontade. Ele Interrompe-a na sua passada contada, não são sons, são sinfonias, e os lábios remexem-se vagarosamente e não se ensurdecem pelo barulho dos carros. Interpela-a: Está um belo dia, também poderia não estar. Ela hesitou, preferiu manter-se em silêncio.Sabes, gosto de gelado. Gosto de chocolate e devoro bolos. Nunca se gosta tanto do que nos faz bem .
O homem não aparentava risco, não apresentava drama, não sabia a mistério, não lhe enchia de súbitos ataques fervorosos. Era calmo, consciente, talhado pela vida.
Estampou-se um sorriso na sua cara, muito generosa a mulher em questão, rapidamente uma expressão caricatural de auto-suficiência rematou as suas linhas. Afastou-se. Voltou a pisar aquela pedra, virou para o passeio que já não estava lá como estaria à dois minutos, e ria-se da história mirabolante, e mais as peripécias, e mais os gestos daquela pessoa, e mais a sua roupa e a sua sujidade para não falar da sua indigesta aparência.. mas, ao contar, como poderia não contar, era moralmente correcta. Uma rapariga especial: inteligente, cheia de amigos, nunca mudaria a sua personalidade, bonita, descrevia o belo como ninguém, odiava indecisões. Curiosamente, estava sempre onde devia estar. Onde estava ela? É fácil, no lugar onde estavam as outras. Não são elas que são especiais, são os lugares. O resto é dependência.

À espera..

É cedo e como tal está uma bela temperatura, amena, um vento moderado, olhando pela janela, ninguém diria que era dia de chuva, que pena estar sozinha a apreciá-la. Tenho o meu espaço desarrumado, espero uns momentos penetrada na janela, mas as minhas plantações continuam franzinas. O ar está abafado mas ninguém me sabe explicar porquê.
Ontem cresceram-me casulos enfeitados nas cordas vocais que me enfastiam, bichos gordos e borulentos instalaram-se nos sulcos da minha mão, espero que não sejam virulentos, tenho teias de aranha cheias insectos aflitos a emaranharem-me o cabelo, apanhei um fungo da vida.
Tenho uma estrada que se encurta, extremamente apertada para as banhas que teimam desabar da minha cintura, tenho crescido num espaço tão apertado, e sinto-me tão perdida. As minhas coisas, pertencem-me, existem, o sorriso é meu e a força é minha, e a estranheza eu sinto-a, mas eu cresço, e sou outra, e outra, e outra, se é que sou alguém que agora fica por aqui.
Sigo a paços curtos para a sala, estão a tocar piano na casa vizinha, a luz é ténue e parece mexer-se ao som de cada tecla, mesmo sem saber dançar, sinto-me anestesiada, é quase erótico, relaxo, e pego numa amêndoa de chocolate que saboreio lentamente, tão lentamente que logo me enervo e a engulo. Estou deliciada com os gritos do instrumento, e apetece-me contorcer-me, gemer de entusiasmo e criatividade. Que pena que os carris da minha vida estejam enferrujados, que me tenham amputado o equilíbrio, que pena, que só saiba viver intensamente ou morrer. Pareço uma cadela no cio, delirante com a arte o mais sincero acto de compreender a vida, delirante com os modos e carícias da gente grande, e da conquista do verdadeiro mundo pelos pequenos, que pena que eu seja doente de viver. E agora começo a balançar a cabeça, repetidamente e freneticamente, estou no meu estado demente, nem a minha costela de menina me salva, nem dos olhos vidraçados do meu avô me recordo, e os reflexos louros nas ondulações do cabelinho da minha irmã são chamarisco para pedófilos, na minha ilha está a serenidade dos que sabem de si se dão a si, são pedaços conquistados de paz.
Cheiro do mundo entope-me as veias, os bizarros argumentistas da sociedade, os vícios motivados pelo ciúme, o mosaico de melodias dos corajosos e insensatos, os que agradam sôfregos de fartura e inutilidade, os que querem pedir e não têm quando pedem, a barriga cheia de tinta vermelha dos que sabem falar, as sapatilhas gastas dos namorados velhos, as memórias que não deixaram saudade, o gosto a pão e peixe no local do costume, que era dos pescadores mas que agora rende mais dinheiro. Dêem-me vida, infortúnio não é estar aqui, é enlouquecer de sentidos.

Texto : mónica mata

relativizando

Era ainda um ratinho, metida de senhora requintada e altiva, ou imitando os gestos secos do meu pai, tinha sempre muito para dizer. Aqui dentro, saía tudo apressado, simples, sincero, tão verdadeiro que fazia sorrir os adultos. Agora espanto-me por esses sorrisos, agora que sei. Sim, eram sorrisos para as crianças, que não se fazem entre adultos, eram sorrisos enternecidos que não se quer, mas quando se é criança não se sabe, sorrisos deixam-nos a sorrir, para aprendermos a sorrir como eles, para outras crianças, sorrir por perda, sorrir por remorsos, sorrir porque para outras crianças também será passado. E, enquanto andava nas voltas das voltas das saias da minha mãe, era feliz, e os outros, não me lembro como eram, não reparava.
De que serve ser irremediavelmente feliz? Para quê momentos de felicidade? A felicidade é oportunista, deixa-te feliz num mundo de infelizes, vicia-te, torna-te assustadiço, mesquinho, receando perdê-la, essa... que não é tua.
Hoje, disseram-me que relativizo. É essencial relativizar, ser comedido nas emoções. Desde que me lembro, marcaram-me as situações mais caricatas e simples, ridículas e desinteressantes. No entanto, sou esses sonhos e essas infelicidades, respondo por traços do meu passado, e revolto-me. Há pouco de mim construído pelos meus ideais, o pouco que sei, e sei muito pouco, é facilmente ameaçado pelas memórias.
A cidade não me faz querer ser diferente, cheia de desencontros de olhares, mulheres que se entregam sem defesas, visões imaturas da vida, diferentes interesses disfarçados por um momento de prazer..
Descobri que os Homens não cuidam do coração, acham-se no direito de irem meios cheios para corações de copos cheios, e os copos partem-se, e os que se recompõe encontram sempre metade. Quem não sabe guardar o passado, tudo o que der será mal dado, e sendo assim, não deverá ser dado.
Mas amanhã é outro dia, e estas palavras são de hoje, e há esperança de ser feliz. É reconfortante ver que o sol sempre que abre, aquece-me, que as cerejas continuam a ser vendidas ao mesmo preço, até depois da crise, que as pessoas não ficam infelizes ao mesmo tempo. Se souberes aceitar a tristeza e a felicidade, relativizando, não serás dominado pelas emoções.

Mia Couto

" Pergunta-me
se ainda es o meu fogo
se acendes ainda
o minuto da cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o ventro não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser "

" Reencontrar secretamente | o fugaz encanto | o perfeito momento | em que a carne tocou a fonte| e o sangue | fora de mim | procurou o seu coração primeiro"


"Nesse lugar
encostamos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve "

- Que lindos poemas. quanto talento.

Impossível - Raul Cordeiro

"Procuro em vão a sorte
Do amor com sabor
De fruta melada e doce
Um amor de noite e de dia
Que faça do tédio
Uma doce melodia
Impossível…
Com a minha sorte
Ter desejo de tamanho doce
E tal porte
Impossível…
Com o que vivo
Ter esse mel na minha mesa
Abrir o frasco
Em surpresa
Impossível…
Ser assim
Mais para todos
Que para mim"

Raul Cordeiro

Obrigado

"Atravessa-me, se levares mais q a minha pele, hás-de ver a cobertura de mel..
está tão triste este sonho, desco as mãos a deus mas continuam em forma de cova,
q rigidez nocturna,
toco nos lábios, primeiro ao de leve,agora, ritmadamente, como um piano..
e vou subindo ao tecto,
...onde está um corvo no meu caminho
e brinco com ele..
arranca-me o braço,
ficou um trevo em vez de um braço
se dizer "sim" são tres letras
dizer não também o é.." mónica Mata

moi

" Sempre..
um pó de mágoa
milho semeado, repartido,
guisado frio
feia má sorte
cabo das tormentas
filho desdenhado
grisalho é o velho
guitarra sem afinação
pés calcados,
ponte perdida numa cidade...

eu entrego-me..."
monica mata